No artigo publicado por ele, hoje, no Jornal On Line O Globo, intitulado "Paul Vocker, um servidor público", ele nos conta como entre 1979 e 1985 uma crise bancária norte-americana, que segundo Elio Gaspari, se baseou em empréstimos irresponsáveis, levou o servidor público norte-americano Paull Volcker, como presidente do Banco Central dos EUA, a optar entre salvar os bancos americanos ou explodir com as dívidas de países do terceiro mundo. Ele escolheu a segunda opção, claro, elevando as taxas de juros dos EUA a 21% ao ano, em meio à alta inflacionária dos EUA da época.
É claro que a crise do petróleo de 1979 teve direta causa na questão econômica americana. É claro que os países devem se organizar de forma a não depender demais da economia americana (ou ter reservas cambiais que anulem as respectivas dívidas em dólar), mas vivia-se um mundo criado no pós-guerra, com avanço de uma arquitetura financeira e produtiva global estimulada pelos trilaterais (EUA, Europa e Japão) e em especial pelos EUA, em que a incursão desses países no sistema econômico e produtivo do terceiro mundo era apregoada como uma dádiva para ajudar e desenvolver esses países. Pois bem, eles (países pobres) embarcaram na cantilena e na hora em que apertou o cinto, os ricos se salvaram e definitivamente afundaram os devedores em dólar.
É isso que esse artigo maravilhoso e que será lido por poucos e entendido por menos ainda (exceto o pessoal do mercado financeiro e economistas) te informa. E o pior: fizeram os países de terceiro mundo acreditarem que o problema da "crise da dívida do terceiro mundo", iniciada em 1982, tendo atingido inclusive o Brasil, era deles mesmos. A banca financeira norte-americana não teve sua gigantesca parcela de culpa divulgada.
Essa movimentação se repetiu na crise financeira de 2008/2013. Não foi dito que a culpa foi dos empréstimos mal concedidos pelos bancos americanos a devedores incapazes de pagar suas dívidas imobiliárias. E o mundo inteiro pagou e ainda paga hoje, em desemprego em massa e em baixo crescimento econômico, para salvar os bancos americanos e europeus, na hipótese.
A conclusão de Elio Gaspari é que é o ponto alto do artigo sobre essa movimentação de salvação de bancos americanos entre 1979 e 1982 ter sido publicizada de forma diferente do que realmente foi, isentando os bancos americanos: "A grande proeza dele (Paul Volcker), da banca e do FMI foi conseguirem que todos os governos devedores contassem aos seus povos que a crise era deles."
Transcrevo, como peça de estudo, o fantástico artigo revelador sobre essa trama que se repete cotidianamente no Brasil e no mundo:
"Paul Volcker, um servidor público - Ele mandou na economia americana e quebrou o Terceiro Mundo. Vestia-se mal e morava numa quitinete.
No final do século passado, Paul Volcker estava num coquetel na Universidade de Princeton, uma daquelas confraternizações nas quais os americanos tomam vinho branco em copos de plástico. Um curioso aproximou-se da sua imponente figura (2m01cm) e, no meio da conversa, arriscou:
— O seu livro publicado em parceria com o ex-presidente do Banco do Japão deixa a impressão de que em 1982 o senhor quebrou o Terceiro Mundo para salvar os bancos americanos.
Volcker assumiu o Federal Reserve Bank em 1979, com a inflação americana acima de dois dígitos. Como presidente do banco central mais poderoso do mundo, paulatinamente jogou os juros para cima, e eles chegaram a 21% ao ano. Com isso, num cenário de alta do petróleo e baixa de outras matérias-primas, as dívidas dos países do Terceiro Mundo atreladas às taxas americanas explodiram. Em 1982, o México não conseguiu pagar suas contas. Meses depois, foi a vez do Brasil, e em alguns meses, só na América Latina, 16 países estavam quebrados. Deu-se a esse período o nome de “Crise da Dívida do Terceiro Mundo”.
Volcker respondeu ao curioso:
— Esse era o meu serviço (“That was my job.”), e a conversa migrou para amenidades.
Em 1982 não houve a tal “Crise da Dívida do Terceiro Mundo”, houve uma crise da banca internacional que emprestou dinheiro a quem não devia, mas os credores, com a ajuda dos governos caloteiros e do Fundo Monetário Internacional, inverteram o jogo. (Em 2007, quando a banca atolou-se, ninguém disse que havia uma crise dos devedores americanos inadimplentes.)
Anos depois, William Rhodes, chefe do cartel dos bancos, condecorado pelo governo brasileiro com a Ordem do Cruzeiro do Sul, escreveria:
“A crise da dívida latino-americana não foi apenas uma punição a excessos de endividamento. Foi também uma crise bancária.”
Volcker salvou a banca porque os servidores públicos americanos defendem os interesses de seu país.
Ele era um economista do Federal Reserve de Nova York e aceitou a presidência do banco central sabendo que perderia metade do salário. Mudou-se para uma quitinete de estudante em Washington, e sua mulher alugou um dos quartos de seu apartamento em Manhattan. Fumava charutos baratos, comia congelados de mercearias e, certa vez, o presidente Jimmy Carter mandou-lhe um recado: ou comprava um terno novo, ou não o receberia na Casa Branca. (Há uns 20 anos, o milionário presidente da Goldman Sachs chegou em casa com um sobretudo novo, de uma loja caríssima. A mulher mandou que o devolvesse, pois já tinha abrigo para o inverno.)
Volcker tinha dois caminhos: quebrava os endividados do Terceiro Mundo ou quebrava os grandes bancos americanos. Seu serviço, como presidente do Fed, era defender o sistema financeiro dos Estados Unidos. Pouco importava se o presidente da estatal petrolífera da Indonésia havia fechado um empréstimo de 25 milhões de dólares assinando numa caixa fósforos de boate.
A grande proeza dele, da banca e do FMI foi conseguirem que todos os governos devedores contassem aos seus povos que a crise era deles.
Depois de sair do Fed, Volcker foi para a banca privada e contava que lá, num só dia, ganhou mais dinheiro do que em 30 anos de serviço público. Ele morreu na segunda-feira."
Acesse o original em https://oglobo.globo.com/opiniao/paul-volcker-um-servidor-publico-24130241
Esse artigo mostra para você a importância de bons servidores públicos. Mas mostra como os países ricos se salvam sem compromisso com o bem-estar dos países pobres ou daqueles a quem dizem ajudar. Mostra ainda o método de obliteração da verdade. Mostra como as justificativas que aparecem em sociedade, divulgadas pela grande mídia, são destituídas de qualquer verdade ou de grande parte da verdade.
Para quem acompanha o mercado e as publicações mentirosas da grande mídia, isso é simples, mas a maioria dos cidadãos e dos leitores podem não ter ideia disso e é importante divulgar. O sistema de mentir socialmente sobre orçamento, dívidas, origens e consequências dessas dívidas públicas e as medidas que devem ser adotadas para solucionar e pagá-las ou resolvê-las é o mesmo sempre. Os fatos mudam no tempo, as soluções são apontadas como adequadas a cada caso, mas o vetor retórico é o mesmo: culpa do país, culpa da máquina pública, culpa de trabalhadores com excesso de direitos, culpa de aposentados e servidores... nunca é culpa do mercado... o mercado nunca admite a sua parcela de culpa, sugere o sacrifício popular e todos concordam e aplaudem isso.
O mesmo ocorreu na crise financeira de 2008/2013 (admitem de 2008 a 2011 somente, mas temos reflexos dela até hoje (dez/2019), inclusive no mundo rico). A culpa foi dos bancos americanos e também europeus. Não foram punidos. Milhões de pessoas perderam empregos, em especial nos EUA e Europa. E a crise foi admitida como algo natural e cíclico, algo com o que se conviver.
No Brasil, a mesma coisa se faz com a construção de uma realidade mentirosa sobre a evolução da dívida pública, evolução da crise econômica brasileira de 2013 para cá. Não falam a verdade, culpam exclusivamente o PT e suas administrações, nada falam da influência da bolha imobiliária originada com a crise mundial de 2008, nada falam do menor patamar histórico do petróleo e minério de ferro, nada falam da consequência de majoração de aluguéis comerciais e residenciais para a falta de valores disponíveis das famílias e queda do giro econômico. Você nunca sabe da verdade.
Nessa falta de verdade, criam um culpado ou dois, e massificam que isso é que é a verdade. Você nunca sabe o real e concorda com sugestões de soluções para a causa falsa do problema econômico, orçamentário ou social. A solução sempre empobrece pessoas físicas e enriquece bancos e grandes corporações.
O mesmo foi feito com o "déficit público brasileiro". Ninguém fala que se cobrarmos metade das taxações que países ricos cobram de seus cidadãos ricos e de de suas grandes corporações e bancos o Brasil teria em torno de 3 trilhões de reais disponíveis em 10 anos. Melhor é o Paulo Guedes espremer os direitos previdenciários de milhões de brasileiros e diminuir direitos de aposentados, trabalhadores, pensionistas e servidores públicos e obter 1 trilhão em dez anos. Empobrecer pessoas físicas ao invés de instituir a participação tributária de grandes corporações, pejotizados e bancos...
Temos de entender essa sistemática, senhores. Quanto antes, melhor. Enquanto isso, os direitos, renda e patrimônio das pessoas físicas, os 99,9% da população, definham. Ao fim, sem a sua compreensão e intervenção, nossos filhos estarão recolhendo migalhas da economia, enquanto nos próximos 30 anos os filhos dos bilionários e milionários americanos (somente americanos) estarão recolhendo e compartilhando mais de 36 trilhões de dólares em herança (https://economia.uol.com.br/noticias/bloomberg/2019/11/19/herancas-nos-eua-devem-somar-us-36-trilhoes-em-30-anos.htm).
Pare e pense, amigo leitor. E compartilhe, claro.
p.s.: texto revisado em 11/12/2019.
p.s. 2: texto revisado e ampliado em 12/12/2019.