Theotonio dos Santos é Professor Emérito da Universidade Federal Fluminense, Presidente da Cátedra da UNESCO e da Universidade das Nações Unidas sobre economia global e desenvolvimentos sustentável. Professor visitante nacional sênior da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Acesse: http://theotoniodossantos.blogspot.com.br/2010/10/carta-aberta-fernando-henrique-cardoso.html
Abaixo a transcrição da Carta Aberta deTheotonio dos Santos e sua acusação de que os temas acima descritos e autointitulados bens alcançados pelo Plano Real e pelo Governo do Fernando Henrique são meros mitos. No site do autor há a cópia da Carta Aberta de Fernando Henrique, que gerou a presente resposta. É um capítulo importante do debate na política nacional que vale a pena rever, principalmente porque é atual.
"Carta aberta a Fernando Henrique Cardoso
Meu caro Fernando,
Vejo-me na
obrigação de responder a carta aberta que você dirigiu ao Lula, em nome de uma
velha polêmica que você e o José Serra iniciaram em 1978 contra o Rui Mauro
Marini, eu, André Gunder Frank e Vânia Bambirra, rompendo com um esforço teórico
comum que iniciamos no Chile na segunda metade dos nos 1960. A discussão agora
não é entre os cientistas sociais e sim a partir de uma experiência política que
reflete comtudo este debate teórico. Esta carta assiada por você como
ex-presidente é uma defesa muito frágil teórica e politicamente de sua gestão.
Quem a lê não pode compreender porque você saiu do governo com 23% de aprovação
enquanto Lula deixa o seu governo com 96% de aprovação. Já discutimos em várias
oportunidades os mitos que se criaram em torno dos chamados êxitos do seu
governo. Já no seu governo vários estudiosos discutimos, já no começo do seu
governo, o inevitável caminho de seu fracasso junto à maioria da população. Pois
as premissas teóricas em que baseava sua ação política eram profundamente
equivocadas e contraditórias com os interesses da maioria da população. (Se os
leitores têm interesse de conhecer o debate sobre estas bases teóricas lhe
recomendo meu livro já esgotado: Teoria da Dependencia: Balanço e Perspectivas,
Editora Civilização Brasileira, Rio, 2000).
Contudo nesta oportunidade me cabe
concentrar-me nos mitos criados em torno do seu governo, os quais você repete
exaustivamente nesta carta aberta.
O primeiro mito é
de que seu governo foi um êxito econômico a partir do fortalecimento do real e
que o governo Lula estaria apoiado neste êxito alcançando assim resultados
positivos que não quer compartir com você... Em primeiro lugar vamos
desmitificar a afirmação de que foi o plano real que acabou com a inflação. Os
dados mostram que até 1993 a economia mundial vivia uma hiperinflação na qual
todas as economias apresentavam inflações superiores a 10%. A partir de 1994,
TODAS AS ECONOMIAS DO MUNDO APRESENTARAM UMA QUEDA DA INFLAÇÃO PARA MENOS DE
10%. Claro que em cada pais apareceram os “gênios” locais que se apresentaram
como os autores desta queda. Mas isto é falso: tratava-se de um movimento
planetário.
No caso brasileiro, a nossa inflação girou,
durante todo seu governo, próxima dos 10% mais altos. TIVEMOS NO SEU GOVERNO UMA
DAS MAIS ALTAS INFLAÇÕES DO MUNDO. E aqui chegamos no outro mito incrível.
Segundo você e seus seguidores (e até setores de oposição ao seu governo que
acreditam neste mito) sua política econômica assegurou a transformação do real
numa moeda forte. Ora Fernando, sejamos cordatos: chamar uma moeda que começou
em 1994 valendo 0,85 centavos por dólar e mantendo um valor falso até 1998,
quando o próprio FMI exigia uma desvalorização de pelo menos uns 40% e o seu
ministro da economia recusou-se a realizá-la “pelo menos até as eleições”,
indicando assim a época em que esta desvalorização viria e quando os capitais
estrangeiros deveriam sair do país antes de sua desvalorização, O fato é que
quando você flexibilizou o cambio o real se desvalorizou chegando até a 4,00
reais por dólar. E não venha por a culpa da “ameaça petista” pois esta
desvalorização ocorreu muito antes da “ameaça Lula”. ORA, UMA MOEDA QUE SE
DESVALORIZA 4 VEZES EM 8 ANOS PODE SER CONSIDERADA UMA MOEDA FORTE? Em que
manual de economia? Que economista respeitável sustenta esta tese?
Conclusões: O
plano real não derrubou a inflação e sim uma deflação mundial que fez cair as
inflações no mundo inteiro. A inflação brasileira continuou sendo uma das
maiores do mundo durante o seu governo. O real foi uma moeda drasticamente
debilitada. Isto é evidente: quando nossa inflação esteve acima da inflação
mundial por vários anos, nossa moeda tinha que ser altamente desvalorizada. De
maneira suicida ela foi mantida artificialmente com um alto valor que levou à
crise brutal de 1999.
Segundo mito;
Segundo você, o seu governo foi um exemplo de rigor fiscal. Meu Deus: um governo
que elevou a dívida pública do Brasil de uns 60 bilhões de reais em 1994 para
mais de 850 bilhões de dólares quando entregou o governo ao Lula, oito anos
depois, é um exemplo de rigor fiscal? Gostaria de saber que economista poderia
sustentar esta tese. Isto é um dos casos mais sérios de irresponsabilidade
fiscal em toda a história da humanidade.
E não adianta
atribuir este endividamento colossal aos chamados “esqueletos” das dívidas dos
estados, como o fez seu ministro de economia burlando a boa fé daqueles que
preferiam não enfrentar a triste realidade de seu governo. UM GOVERNO QUE CHEGOU
A PAGAR 50% AO ANO DE JUROS POR SEUS TÍTULOS, PARA EM SEGUIDA DEPOSITAR OS
INVESTIMENTOS VINDOS DO EXTERIOR EM MOEDA FORTE A JUROS NORMAIS DE 3 A 4%, NÃO
PODE FUGIR DO FATO DE QUE CRIOU UMA DÍVIDA COLOSSAL SÓ PARA ATRAIR CAPITAIS DO
EXTERIOR PARA COBRIR OS DÉFICITS COMERCIAIS COLOSSAIS GERADOS POR UMA MOEDA
SOBREVALORIZADA QUE IMPEDIA A EXPORTAÇÃO, AGRAVADA AINDA MAIS PELOS JUROS
ABSURDOS QUE PAGAVA PARA COBRIR O DÉFICIT QUE GERAVA. Este nível de
irresponsabilidade cambial se transforma em irresponsabilidade fiscal que o povo
brasileiro pagou sob a forma de uma queda da renda de cada brasileiro pobre. Nem
falar da brutal concentração de renda que esta política agravou dráticamente
neste pais da maior concentração de renda no mundo. VERGONHA FERNANDO. MUITA
VERGONHA. Baixa a cabeça e entenda porque nem seus companheiros de partido
querem se identifica com o seu governo...te obrigando a sair sozinho nesta
tarefa insana.
Terceiro mito -
Segundo você, o Brasil tinha dificuldade de pagar sua dívida externa por causa
da ameaça de um caos econômico que se esperava do governo Lula. Fernando, não
brinca com a compreensão das pessoas. Em 1999 o Brasil tinha chegado à drástica
situação de ter perdido TODAS AS SUAS DIVISAS. Você teve que pedir ajuda ao seu
amigo Clinton que colocou à sua disposição ns 20 bilhões de dólares do tesouro
dos Estados Unidos e mais uns 25 BILHÕES DE DÓLARES DO FMI, Banco Mundial e BID.
Tudo isto sem nenhuma garantia.
Esperava-se
aumentar as exportações do pais para gerar divisas para pagar esta dívida. O
fracasso do setor exportador brasileiro mesmo com a espetacular desvalorização
do real não permitiu juntar nenhum recurso em dólar para pagar a dívida. Não tem
nada a ver com a ameaça de Lula. A ameaça de Lula existiu exatamente em
conseqüência deste fracasso colossal de sua política macro-econômica. Sua
política externa submissa aos interesses norte-americanos, apesar de algumas
declarações críticas, ligava nossas exportações a uma economia decadente e um
mercado já copado. A recusa dos seus neoliberais de promover uma política
industrial na qual o Estado apoiava e orientava nossas exportações. A loucura do
endividamento interno colossal. A impossibilidade de realizar inversões públicas
apesar dos enormes recursos obtidos com a venda de uns 100 bilhões de dólares de
empresas brasileiras. Os juros mais altos do mundo que inviabilizava e ainda
inviabiliza a competitividade de qualquer empresa. Enfim, UM FRACASSO ECONOMICO
ROTUNDO que se traduzia nos mais altos índices de risco do mundo, mesmo
tratando-se de avaliadoras amigas. Uma dívida sem dinheiro para pagar...
Fernando, o Lula não era ameaça de caos. Você era o caos. E o povo brasileiro
correu tranquilamente o risco de eleger um torneiro mecânico e um partido de
agitadores, segundo a avaliação de vocês, do que continuar a aventura econômica
que você e seu partido criou para este pais.
Gostaria de
destacar a qualidade do seu governo em algum campo mas não posso fazê-lo nem no
campo cultural para o qual foi chamado o nosso querido Francisco Weffort (neste
então secretário geral do PT) e não criou um só museu, uma só campanha
significativa. Que vergonha foi a comemoração dos 500 anos da “descoberta do
Brasil”. E no plano educacional onde você não criou uma só universidade e entou
em choque com a maioria dos professores universitários sucateados em seus
salários e em seu prestígio profissional. Não Fernando, não posso reconhecer
nada que não pudesse ser feito por um medíocre presidente.
Lamento muito o
destino do Serra. Se ele não ganhar esta eleição vai ficar sem mandato, mas esta
é a política. Vocês vão ter que revisar profundamente esta tentativa de encerrar
a Era Vargas com a qual se identifica tão fortemente nosso povo. E terão que
pensar que o capitalismo dependente que São Paulo construiu não é o que o povo
brasileiro quer. E por mais que vocês tenham alcançado o domínio da imprensa
brasileira, devido suas alianças internacionais e nacionais, está claro que isto
não poderia assegurar ao PSDB um governo querido pelo nosso povo. Vocês vão
ficar na nossa história com um episódio de reação contra o vedadeiro progresso
que Dilma nos promete aprofundar. Ela nos disse que a luta contra a desigualdade
é o verdadeiro fundamento de uma política progressista. E dessa política vocês
estão fora.
Apesar de tudo
isto, me dá pena colocar em choque tão radical uma velha amizade. Apesar deste
caminho tão equivocado, eu ainda gosto de vocês ( e tenho a melhor recordação de
Ruth) mas quero vocês longe do poder no Brasil. Como a grande maioria do povo
brasileiro. Poderemos bater um papo inocente em algum congresso internacional se
é que vocês algum dia voltarão a freqüentar este mundo dos intelectuais
afastados das lides do poder.
Com a melhor
disposição possível mas com amor à verdade, me despeço
Theotonio Dos Santos"
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